quarta-feira, 9 de março de 2016

a conexão bellarosa

Li tudo o que podia de Saul Bellow nos anos 1980 (acho que nessa época eu só lia autores americanos, com as exceções dos bons Proust e Joyce, e dos gregos, claro). Lembro-me bem do último que li, "A mágoa mata mais", um livro de capa amarelada, editado pela Rocco, pois eu deixei cair meu volume em uma poça d'água quando voltava para casa tarde da noite, algo intoxicado, e até hoje o vejo enrugado na estante, envergonhado, o pobre. Tempos atrás um amigo, um disciplinado leitor, Charlles Campos, reclamou de não haver Bellow por aqui. Pois agora tem. Neste volume estão reunidas as últimas quatro narrativas de Bellow. São textos realmente bons. Ele sempre apresenta personagens e situações rapidamente, mas sabemos que o ponto importante das histórias nunca é revelado tão rapidamente assim. Parece que Bellow é um habilidoso malabarista que equilibra dinamicamente várias maçãs no ar antes de segurar firmemente uma delas. Quando essa questão principal fica explícita o leitor sente um assombro, quase suspira de contentamento. Nas suas histórias sempre há uma espécie de inversão de culpa; uma relação complexa entre efebo e mentor (ou ao menos entre um sujeito que conta uma história e alguém cuja vida mereça ter sua vida contada); um exercício de mundanidade, de prática na vida em sociedade; alguém que é um bom observador ou que possui excelente memória; um homem ou mulher cuja profissão seja mais próxima das ciências naturais em contraste com um homem ou mulher que trabalhe nas áreas de humanidades. Em "Um furto" acompanhamos a forma como uma mulher administra emocionalmente a perda de um anel e aprende algo novo sobre si e as pessoas com quem convive; já em "A conexão Bellarosa", novela que dá nome ao volume, sabemos de um homem que imagina ter a obrigação moral de conhecer pessoalmente o sujeito que possibilitou sua fuga do massacre nazista durante a segunda grande guerra, mas o que Bellow discute mesmo são as diferenças entre a cultura judaica na América do Norte e na Europa (e também aquela construída no pós guerra em Israel); "Uma afinidade verdadeira" parece uma versão erudita de "Emma", de Jane Austen, pois trata de como um homem muito rico possibilita o reencontro de um sujeito com uma antiga namorada, sujeito que ele conhece superficialmente, mas por quem desenvolve forte afinidade após um incidente banal numa festa. "Ravelstein" é o texto mais poderoso do livro, o mais intrincado, um romance completo. Um escritor famoso, já idoso e muito rico, Abe Ravelstein, sabendo que sua morte é iminente, solicita a um amigo, que é só um pouco mais jovem, Chick, que escreva sua biografia. A princípio esse amigo reluta em aceitar a tarefa, pois conhece muito bem o quão controverso e mercurial é o caráter de Ravelstein, mas o leitor sabe que aquilo que tem em mãos já é a biografia solicitada. Bellow alcança manter o leitor curioso nas muitas reviravoltas da história alternando os sucessos de Ravelstein com os de Chick, fazendo-os cruzar o Atlântico várias vezes, incluindo digressões sobre estoicismo, cultura americana, judaísmo, política universitária, niilismo, decadência física e morte. E pensar que Bellow escreveu essa última história com 85 anos. Incrível. 
[início: 19/02/2016 - fim: 01/03/2016]
"A conexão Bellarosa: 4 novelas", Saul Bellow, tradução de Caetano W. Galindo e Rogério W. Galindo, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2015), brochura 16x23 cm., 417 páginas, ISBN: 978-85-359-2611-8 [edição original: A Theft (New York: Penguin Books) 1989; The Bellarosa Connection (New York: Penguin Books) 1989; The actual (New York: Viking/Penguin Books) 1997; Ravelstein (New York: Viking Press) 2000]

Nenhum comentário: