segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

vênus e adônis

Quem leu o bom e velho Ovídio conhece a história: Afrodite (a Vênus dos romanos) leva uma moça a loucura (a lasciva Mirra, que seduz seu pai Theias - ou Ciniras). Antes de morrer e ser metamorfoseada numa árvore, Mirra da a luz a um filho, Adônis (ele é a casca desta árvore!). Encantada pela beleza do menino Afrodite o leva para ser criado por Perséfone, rainha do Hades sombrio. Quando adulto as duas deusas querem Adônis para si. Zeus acaba decidindo que ele deveria ficar um terço do ano com cada uma delas e escolher livremente o que fazer com a outra terça parte. Adônis escolhe ficar mais tempo com Afrodite. Eles tornam-se amantes, passam o tempo caçando juntos na mata. Num dia Adônis decide perseguir sozinho um javali (que na verdade é o deus Ares metamorfoseado, ciumento dos amores de Afrodite pelo rapaz mortal). Adônis é morto (emasculado e sangrado até a morte seria a forma mais precisa de se dizer) e de seu sangue brotam anêmonas. De volta ao Hades, novamente terá Perséfone como amante e visitas regulares de sua boa Afrodite. Cabe registrar que ninguém melhor que Robert Graves explica a simbologia dos períodos sobre e sob a terra que os personagens gregos experimentam nos mitos. Shakespeare, no início dos anos 1590, em virtude do fechamento dos teatros, dedica-se a escrever dois poemas longos. "Vênus e Adônis", inspirado na história de Ovídio, alcança enorme sucesso de vendas e o consagra como poeta. "A violação de Lucrécia", também inspirado na obra de Ovídio, é outro sucesso. Shakespeare modifica um tanto o mito e o torna compacto, a ação não tomando mais que um dia. Ele não está interessado na descrição das caçadas com as quais os dois amantes se ocupam no mito original, mas sim com o jogo retórico da sedução. Na verdade o Adônis de Shakespeare resiste a sedução de Vênus (Shakespeare utiliza a forma latina da deusa). A conjunção carnal não se consuma, o amor é "cosa mentale", é arte. Vênus utiliza todos artifícios que pode, mas Adônis é sempre esquivo e desdenha da deusa, a faz desmaiar de amor (logo ela, a deusa do Amor). Ela tenta impedir o rapaz de sair a caçar, retardando-o, mas ele resiste e escapa, para logo e longe dela ser morto pelo javali. Ela o chora, pranteia, amaldiçoa as Parcas, discursa sobre o amor e a luxúria e segue seu caminho, farta do mundo, de volta para sua Pafos natal. A tradução é de Alípio Correia de França Neto, que assina também uma longa introdução, muito boa mesmo, onde contrasta as versões de Ovídio e Shakespeare. Ele chama o poema de "drama da sedução", uma beleza de definição. Alípio também inclui no livro um conjunto de notas, compiladas e adaptadas de outros comentadores da obra, que fazem a festa do leitor curioso. A edição é bilíngue e o leitor pode apreciar cada uma das soluções que Alípio criou para contornar as dificuldades do texto. Comecei a ler esse livro ainda na primavera do ano passado, mas os dias andavam turvos e amargos demais para que a leitura avançasse. Nesse glorioso verão o livro se deixou ler/seduzir. Foi bom.
[início: 06/10/2015 - fim: 13/01/2016]
"Vênus e Adônis", William Shakespeare, tradução de Alípio Correia de França Neto, São Paulo: Texto Editores / Grupo LeYa, 1a. edição (2013) brochura 16x23 cm., 176 págs., ISBN: 978-85-8044-870-2 [edição original: Venus and Adonis (London: Richard Field) 1593]

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