sábado, 23 de maio de 2015

os cantos perdidos da odisséia

Esse "Os cantos perdidos da Odisseia" é muito bom. Zachary Mason tem uma imaginação dos diabos e inventou uma série de histórias que poderiam fazer parte da Odisseia que conhecemos hoje. Os cantos perdidos são inspirados pelo poema épico que atribuímos a um sujeito conhecido como Homero, desde há vinte e oito séculos. São 44 pequenas histórias. Várias são descrições de destinos possíveis para o guerreiro Ulysses (Odysseus): ter trocado de lugar com Páris (ou com Aquiles, ou com Menelau, ou com um troiano desconhecido); ter encontrado Penélope casada (ou morta, ou envelhecida e esquecida dele); ter sido morto; ter se tornado um asceta indiano; ter se transformado num poeta, num vate, no próprio Homero; ter sido aprisionado por Agamêmnon; ter casado com Nausícaa e ficado na Feácea; ter finalmente aceitado o jogo de sedução de Calipso; ter se casado com Palas Athena. Outras histórias não falam explicitamente de Ulysses, mas sim de seus companheiros ou de seres mitológicos: Eumeu, Medusa, Aquiles, Cassandra, Ariadne, Alexandre e vários outros. O catálogo das metamorfoses é igualmente variado: Ulysses pode ser Orfeu, Polifemo, Homero, Tirésias, Teseu, Minos, Circe, pode ser ninguém. Mason faz com que a reconhecida astúcia de Ulysses seja testada novamente. Gostei particularmente de uma história em que as façanhas da guerra de Tróia e as tribulações de Ulysses em sua volta a Ithaca são um jogo de xadrez que dois sábios indianos jogam e também de uma outra, na qual um camponês ouve as histórias contadas por um bando de piratas gregos e passa a recontá-las progressivamente, até chegar a Odisséia que conhecemos ao inventar o nome de seu herói: Odysseus. Junho está chegando e com ele o Bloomsday. Como não gostar de um livro que reconta os caminhos de Ulysses/Odysseus tão bem?
[início: 24/04/2015 - fim: 28/04/2015]
"Os cantos perdidos da Odisseia: um romance", Zachary Mason, tradução de Rubens Figueiredo, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm., 216 págs., ISBN: 978-85-359-1955-4 [edição original: The lost books of the Odyssey: a novel (New York: Farrar, Straus & Giroux / Macmillan) 2007]

sexta-feira, 22 de maio de 2015

segunda fundação

Como já disse no registro anterior (sobre o volume "Fundação e Império": 'o leitor aprende rápido como funciona a proposta de Isaac Asimov: o tempo passa aos saltos (uma ou duas gerações, de forma que alguém sempre é aparentado de um avô ou neto de um personagem já conhecido); um conjunto novo de personagens descreve o quadro social e político de sua época; como num jogo de xadrez forças opostas se alinham e se distribuem pelo espaço (a galáxia inteira, sempre); uma guerra/crise acontece; um tipo de herói age para salvar o dia e o narrador descreve a nova configuração de poder. Enfim, o plano de Hari Seldon para minimizar o interregno entre dois impérios galáticos segue a sequência causal imaginada por ele'). Mas o que reserva Asimov para o fechamento da série? Mulo, o sujeito mutante que domina as ações no final da segunda parte da trilogia, empreende uma expedição para encontrar a mítica "Segunda Fundação". O leitor é apresentado ao grupo que controla essa outra Fundação e conhece seus poderes (sobretudo sua peculiar forma de comunicação). Mulo torna-se uma espécie de déspota esclarecido, desiste de expandir os seus domínios e morre de causas naturais. Sessenta anos depois não há mais um poder imperial hegemônico e o grupo que controla a Fundação original ainda tenta descobrir se será possível contatar os membros da Segunda. Eles promovem uma expedição a Biblioteca Galática (ou o que sobrou dela) no planeta onde tudo começou, Trantor, já que foi ali que Hari Seldon treinou os dois grupos que seriam os futuros administradores das duas fundações criadas por ele. O leitor descobre então o verdadeiro método inventado por Seldon e todo o livro passa a ser entendido a partir destas revelações finais. Toda a trilogia é interessante e movimentada, repleta de enigmas e reviravoltas típicas de livros de mistério ou detetive, mas já está na hora desse velho senhor experimentar livros que ofereçam um desafio maior. A ver.
[início: 19/04/2015 - fim: 20/04/2015]
"Segunda Fundação", Isaac Asimov, tradução de Marcelo Barbão, São Paulo: editora Aleph, 1a. edição (2009), brochura 16x23 cm., 235 págs., ISBN: 978-85-7657-068-4 [edição original: Second Foundation (New York: Gnome Press) 1953]

quarta-feira, 20 de maio de 2015

en el café de la juventud perdida

Dos romances que já li de Patrick Modiano "En el café de la juventud perdida" é o que foi publicado mais recentemente, em 2007 (ele publicou pelo menos outros três depois). É o primeiro livro dele que leio onde há mais de um foco narrativo e o primeiro que se afasta de sua obsessão com o comportamento dos franceses durante a ocupação nazista na segunda grande guerra. Bueno, talvez não se afaste tanto assim, logo explico. A trama se concentra no destino de uma garota conhecida como Louki que frequenta um café de Paris. Esse café é um lugar de estudantes, literatos, boêmios, de gente que vive o presente e não se preocupa com o passado ou o futuro de ninguém. O livro é dividido em cinco capítulos curtos. No primeiro temos um narrador típico de Modiano, seu alter ego, alguém jovem que observa e pensa, que retrospectivamente lembra-se de questões que ficaram sem resposta de um determinado assunto e sabe ser esse assunto o material para um futuro romance. O rapaz frequenta o mesmo café que a garota e se interessa por ela, numa noite caminha de volta para casa acompanhado por ela e por um sujeito que o narrador imagina ser seu namorado. No segundo capítulo um outro narrador, Maurice Raphaël, descreve como foi contratado por um homem para localizar sua mulher, desaparecida há poucos dias. O leitor percebe logo que a mulher desaparecida é a mesma Louki descrita no capítulo anterior e que o detetive é alguém cujo passado é obscuro, que certamente já cometeu crimes e tem contatos com os serviços de informação de seu país. No terceiro capítulo quem narra é Louki. Ficamos sabendo apenas de fragmentos de sua vida, uma sucessão de rupturas, fugas, negação do passado. Nos dois capítulos finais o narrador é um rapaz chamado Roland, que de fato passou a viver com Louki após ela ter abandonado o marido e tê-la conhecido por acaso num curso algo esotérico, ministrado por um sujeito chamado Guy de Vere (que pode também ser uma espécie de psicólogo, analista). Mas esses dois últimos capítulos não são lineares. Num ele fala de Louki no presente da vida deles, quando sabe que mal a conhece (e menos ainda entende sua loucura). No outro ele reencontra o velho Guy de Vere e é estimulado por ele a relembrar Louki, a descrever os demais personagens que ele conhece e gravitavam o mundo dela, numa tentativa de melhor entendê-la, como se ele fosse agora um detetive que se debruça sobre sua própria memória. "En el café de la juventud perdida" lembra um tanto o início de "A colméia", de Camilo José Cela, por conta da descrição detalhada da fauna que frequenta os ambientes viciados e minúsculo dos bares boêmios. Modiano parece incluir sempre a geografia de Paris na trama, descrevendo detalhadamente os caminhos dos personagens pelos bairros (que assim como as pessoas ascendem socialmente, caem em desgraça, são esquecidos, florescem, se envergonham do passado, ambicionam um futuro melhor). O leitor familiarizado com outros livros de Modiano poderia se perguntar: o Roland desse livro pode ser o mesmo sujeito que perdeu a memória em "Calle de las tiendas oscuras"?;  Jeannette Gaul uma das garotas que cuidavam dos irmãos pequenos em "Remissão da pena"? E Guy de Vere, como ele sai de um poema de Edgar Allan Poe e entra nesse romance de Modiano? E cabe registrar por fim que Maurice Raphaël é o pseudônimo de um escritor francês real que talvez tenha mesmo sido colaboracionista (Modiano não consegue mesmo deixar o passado sujo da França suficientemente longe do sol e seus efeitos profiláticos). 
[início: 12/05/2015 - fim: 17/05/2015]
"En el café de la juventud perdida", Patrick Modiano, tradução de María Teresa Gallego Urrutia, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama de Narrativas #705), 1a. edição (2008, brochura 14x22 cm., 131 págs., ISBN: 978-84-339-7486-0 [edição original: Dans le café de la jeunesse perdue (Paris: éditions Gallimard) 2007]

segunda-feira, 18 de maio de 2015

james joyce apocalypse & exile

Vi a exposição "James Joyce: Apocalypse & Exile" em fevereiro, na Marsh's Library, em Dublin. Estava bastante frio, mas era um dia bem ensolarado, sem nuvens. A caminhada foi curta, não mais de quinze minutos de Ballsbridge (onde estava hospedado) até a região da Saint Patrick's Cathedral. A Marsh's é a biblioteca pública mais antiga da Irlanda, aberta ao público em 1707. Foi fundada por um dos arcebispos de Dublin (Narciso Marsh) e contém cerca de 25.000 volumes, principalmente incunábulos, obras litúrgicas e bíblias impressas entre os séculos XVI a XVIII, mas que possui também um variado acervo profano, com livros de ciências, matemática, literatura e ensaios. A Marsh's é citada em pelo menos três das obras de James Joyce, Ulysses, Finnegans Wake e Stephen Hero. O livro de visitantes da biblioteca dá conta que Joyce a visitou nos dias 22 e 23 de outubro de 1902 (tinha pouco mais de 20 anos). A exposição mostra os livros que Joyce consultou nesses dias, obras poéticas de Dante, Boccaccio e Petrarca e ensaios inspirados na tradição espiritual franciscana (no século XVII havia um grupo grande de frades medicantes de orientação franciscana exilados em Dublin). Na exposição (e de resto nesse catálogo) encontramos vinte e cinco livros, todos parte do enorme acervo da biblioteca, incluindo as primeiras edições de Ulysses, Stephens Hero e Finnegans Wake. O primeiro item da exposição é um dos livros de visita da biblioteca onde pode-se encontrar a assinatura de Joyce. Nas quatro salas de exposição encontravam-se também volumes de autores italianos do século XIV (os já citados Dante, Petraca e Boccaccio); autores do século XVII que discutem o culto a são Francisco de Assis (livros de são Bonaventura da Banoregio, Fortunatus Hueber e Willem Spoelberch); autores que discutem as profecias de um filósofo místico, o abade cisterciense Joachin Abbas (ou Joachim de Fiore), que advogava o milenarismo (uma volta do Messias cristão); autores de orientação franciscana que em algum momento estiveram radicados na Irlanda (Mícheál Ó Cléirigh, John Punch, Patrick Fleming, Hugh MacCaughwell, John Colgan e Luke Wadding, entre outros). Todos os livros podiam ser manipulados (desde que você usasse luvas). Claro, tive tempo de ver as altas prateleiras, conversar com as bibliotecárias, sentar nas mesas de consulta e experimentar algo daquilo tudo, vagar pelos salões da biblioteca como quem percorre uma caverna com tesouros e se imagina ali para sempre, com todo o tempo possível para desfrutá-la. O material iconográfico produzido para a exposição é de muito boa qualidade (postais, cartazes e esse catálogo). Além de fac-símiles de cada um dos livros da exposição, o catálogo incluí cinco ensaios: "Exile and the irish franciscan tradition" (assinado por John McCafferty e Mícheál Ó Cléirigh); "Joyce's saints and sages: history, hagiology and the irish franciscan tradition", "Joachin of Fiore and 'Joachitism' from Stephen Hero to Finnegans Wake" e "Joyce and the Trecento" (assinados por (Anne Marie D'Arcy); "James Joyce and the 'Stagnant bay' of Marsh's Library" (assinado por Jason Mcelligott). Ainda vou falar mais desses dias de alegria em Dublin, os dias de minha devota peregrinação pelo mundo de James Joyce. Vale.
[início: 04/02/2015 - fim: 30/04/2015]
"James Joyce: Apocalypse & Exile",  John Maccaggerty, Marina Ansaldo, Anne Marie D'Arcy, Jason Mcelligott, Mícheál Ó Cléirigh, Dublin: Marsh's Library (Department of Arts, Heritage and the Gaeltacht), 1a. edição (2014), brochura 17x24 cm, 96 págs., ISBN: 978-0-9930953-0-6

domingo, 17 de maio de 2015

noturno indiano

Nos romances de Antonio Tabucchi o leitor corre sempre o risco de se deixar iludir por aquilo que o autor apresenta em curtos prólogos (coisa de uma página, se tanto). Ele sempre propõe uma espécie de jogo autoral, de definição de quem é o narrador afinal de contas, mas sendo ele senhor e árbitro das regras e dos prêmios, sabe que sempre exercerá total e implacável controle do que oferece ao leitor. Seus livros sempre são curtos. No caso de "Noturno indiano" Tabucchi diz na nota que antecede o texto que ele (um A.T., que pode não ser Tabucchi, claro) também percorreu os caminhos de seu protagonista, os caminhos serpeantes do narrador da história que começaremos a ler, como se isso desse maior verossimilhança ao texto. Ele lista também os doze lugares da Índia que correspondem as doze noites vividas pelo protagonista naquele país e aos doze capítulos do livro que o leitor irá experimentar. Após a lista eis que surge um narrador dizendo estar em Bombain, na Índia, num táxi, rumo a um hotel onde imagina poder ter notícias de um amigo português chamado Xavier. Nesse hotel encontra uma prostituta que havia lhe enviado uma carta onde o alertava o quão doente Xavier estava. A sequência de eventos é vertiginosa, a cada dia o sujeito que procura Xavier se hospeda em um hotel ou pousada diferente ou embarca em num meio de transporte diferente (um trem ou ônibus), de Bombain a Madras, de Madras a Mangalore e daí a Goa (o antigo enclave português no continente indiano). O Xavier que ele procura parece se metamorfosear ao longo do livro (de doente a estudante de uma sociedade teosófica, asceta em um velho mosteiro, homem de negócios). Como os temas do livro são as questões de identidade, do duplo, do doppelgänger o narrador também passa por transformações importantes, afetado pelas informações fragmentárias e pistas que segue, pistas que recebe da prostituta que o recebe no primeiro capítulo, de um colega de viagem num trem, de um médico, de um monge, de um filósofo, de uma estelionatária, dos recepcionistas e garçons dos hotéis em que se hospeda, de um carteiro amalucado e, por fim, de uma fotógrafa com quem flerta, no último capítulo do livro. O que permanece obscuro no livro pode ser interpretado de várias maneiras, o que é revelado não é exatamente a mais original das soluções possíveis. Paciência. Gostei mais de "Afirma Pereira", mas "Noturno indiano" tem lá seu valor. E Vamos em frente. Vale.
[início: 03/05/2015 - fim: 05/05/2015]
"Noturno indiano", Antonio Tabucchi, tradução de Wander Melo Miranda, São Paulo: editora CosacNaify, 1a. edição (2012), brochura 13x19 cm., 94 págs., ISBN: 978-85-405-0227-7 [edição original: Notturno indiano (Milano: Feltrinelli editore) 1984]

sábado, 16 de maio de 2015

la bestia del corazón

Você precisa estar de bom humor, de bem com a vida, quando escolhe ler um livro de Herta Müller. A mulher é implacável. Expõe sem piedade o horror e a miséria, a violência e a loucura que pode acometer todo um povo, toda uma geração de homens e mulheres. A Romênia sob a ditadura comunista é uma prisão coletiva. As pessoas parecem ter uma vida normal, pois estudam, trabalham, procuram amigos, fazem sexo, têm filhos, nascem e morrem como em qualquer outro lugar do mundo. Entretanto, nesses e demais atos da vida é o estado policial quem comanda, quem controla, quem exige e escolhe, quem decide e manda. Nos demais livros dela que li também é assim. O leitor fica engasgado, em transe, do começo ao fim do livro. Herta descreve como funciona a engrenagem de perseguição em uma ditadura. Em "La bestia del corazón" a narradora, nunca nominada, tem três amigos: Edgar, Georg e Kurt. Eles frequentam a universidade na mesma época (uma quinta amiga, Lola, não suporta o controle opressivo do alojamento estudantil nem a certeza de uma vida medíocre e se suicida). Formados, os quatro amigos passam a trabalhar para o Estado (o único empregador em uma ditadura comunista). Não há inovação, incentivo a criatividade e alegrias no trabalho. Os quatro continuam se correspondendo e eventualmente viajando nos finais de semana para se encontrar. Como se recusam a entrar para o partido e solicitam permissão para emigrarem para a Alemanha passam a ser torturados psicologicamente através de interrogatórios, interceptação de cartas, ameaças explícitas, acusações falsas. Um capitão, Pjele, é o encarregado desse ofício. Todas as demais relações de amizade dos quatro personagens são falsas, pois praticamente todos os cidadãos trabalham para o estado como espiões, delatores, agentes. A corrupção é endêmica. O livro começa e termina com as mesmas frases, que definem o livro: "Quando calamos nos tornamos desagradáveis. Quando falamos nos tornamos ridículos". Os amigos devem se calar para não se comprometerem, não se traírem, não dar pretexto ao Estado para destruí-los definitivamente. Ao mesmo tempo os amigos devem falar para não se esquecerem das coisas boas, daquilo que os une, de seus planos, mas tudo isso soa ridículo quando é ouvido, pois sabem o quão irrealizáveis são aqueles sonhos). Não me cabe escrever aqui o destino de cada um dos personagens e estragar o prazer de um eventual leitor. Trata-se de um bom romance, que merece ser lido. Existe uma tradução brasileira dele, intitulada "Fera d'Alma". Retrospectivamente é difícil acreditar que uma ditadura ensandecida e cruel como a de Ceausescu tenha durado tanto tempo (claro, esquecemos, talvez por economia emocional e psíquica que um assassino como Fidel Castro está no poder há quase sessenta anos; que na Coréia do Norte e na Venezuela loucos manipulam e controlam a população; que milhões morreram pelas idéias ridículas de Josef Stálin, Mao Tsé-Tung, Pol Pot e tantos outros; que as "bestas do coração": o ódio e a maldade, são próprios do homem). E pensar que no Brasil ainda há canalhas dispostos a abraçar a criminosa estupidez do comunismo revolucionário, submeter-se a escravidão mental do fascismo mais podre e corrupto. Argh!
[início: 01/03/2015 - fim: 30/04/2015]
"La bestia del corazón", Herta Müller, tradução de Bettina Blanch Tyroller, Madrid: Ediciones Siruela (coleccíon Nuevos Tiempos), 1a. edição (2009), brochura 14x21 cm., 195 págs., ISBN: 978-84-9841-373-1 [edição original: Herztier (Berlin: Rowohlt Verlag) 1993]

sexta-feira, 15 de maio de 2015

del natural

"Del natural" é um poema longo de W.G. Sebald, publicado originalmente em 1988. São três os conjuntos temáticos do poema. Nos primeiros oito cantos (intitulados "Como la nieve en los Alpes") o leitor é apresentado a uma biografia poética de Matthias Grünewald von Ashaffenburg, um pintor alemão do gótico tardio ( final do século XV e início XVI) que foi contemporâneo de Albrecht Dürer e é reputado como um dos precursores do expressionismo. Assim como em seus romances Sebald começa sua narrativa num lugar não convencional (no caso o retábulo de uma igreja em Lindenhardt, na Baviera, Alemanha) e parte dali seguindo as pistas esparsas de sua obsessão por Grünewald. Mas ele não se restringe a viajar no período de tempo entre as datas de nascimento e morte do artista. Visitamos com ele museus contemporâneos; descobrimos como um biógrafo do pintor cometeu um grave erro de identificação, trocando o nome de Grünewald (que na verdade era Mathis Gothart Niethart); seguimos por cidades e paróquias que encomendam seus trabalhos; com ele fugimos de perseguições religiosas; lamentamos a morte de seu filho único e aprendiz; aprendemos que dele só sobreviveram duas dezenas de trabalhos. O segundo conjunto, de vinte e um cantos (intitulado "Y si me quedar junto al mar más remoto") é também uma biografia poética. A obsessão de Sebald se volta para o botânico e explorador alemão Georg Wilhelm Steller, que viveu na primeira metade do século XVIII. Assim como nos cantos dedicados a Grünewald Sebald narra poeticamente os sucessos da vida de Steller: seus anos de formação em Wittenberg; suas viagens para a Rússia; os anos de trabalho acadêmico com o naturalista Messerschmidt em São Petersburgo; as expedições de trabalho pela Sibéria e sua participação no mapeamento do extremo leste da Rússia, na península de Kamchatka e no Alaska, sob o comando de Vitus Bering. O clima da região é terrível, as dificuldades enfrentadas pelos exploradores enormes. Após a morte de Bering Steller e uns poucos sobreviventes permanecem por meses isolados numa ilha próxima a península antes de conseguirem retornar ao continente. Os dois conjuntos de cantos se espelham. Num é a religião, o sagrado, as coisas divinas que inspiram Grünewald. Noutro é a ciência, a curiosidade científica, o rigor metodológico e a vontade de aprender mais que estimula um Steller profano, que mesmo próximo da morte (jovem, aos 37 anos) zomba da religião ao dizer que somente a natureza, misteriosa e bela, seria responsável por seu destino). O terceiro conjunto de cantos é intitulado "La noche escura hace una incursíon". Sebald faz uma curta autobiografia: conta a história de seus antepassados (que segue até o bombardeio e destruição de Dresden, em 1943); explora o fato de Saturno e a melancolia definirem o dia de seu nascimento; tem a lembrança de um navio chinês no porto de Hamburgo; fala do passado industrial da Manchester; fala dos temas que aguçam sua curiosidade acadêmica; nos leva a Pinacoteca de Munique, onde tenta entender o significado de um quadro: "A batalha de Alexandre em Isso", de Albrecht Altdorfer. Nestes últimos sete cantos achei tudo um bocado enigmático, difícil de associar ou decifrar. Talvez eu entenda melhor numa outra tentativa. Sebald utiliza o subtítulo "poema rudimentario" para identificar seu trabalho. Suas reflexões sobre o impacto da Religião, Natureza e História sobre o homem são realmente poderosas. 
[início: 10/02/2015 - 20/04/2015]
"Del natural: poema rudimentario", W.G. Sebald, tradução de Miguel Sáenz, Barcelona: editorial Anagrama (colección Panorama de narrativas, #591), 1a. edição (2004), 14x22 cm., 109 págs., ISBN: 978-84-339-7052-6 [edição original: Nacht der Natur (Ein Elementargedicht) (Nördlingen: Greno Verlagsgesellschaft m.b.H.) 1988]

quinta-feira, 14 de maio de 2015

perros e hijos de perra

Arturo Pérez-Reverte escreve os domingos, desde o início dos anos 1990, numa revista chamada Xl Semanal, usualmente encartada nos jornais do grupo espanhol Vocento. São centenas os artigos, sobre os mais variados assuntos. Dele já resenhei, além dos romances, uma compilação de artigos náuticos: "Los barcos se pierden en terra". Neste seu "Perros e hijos de perra" estão reunidos 22 desses artigos, publicados entre 1993 e 2014. São crônicas ligeiras, que dão conta de um sujeito que na dúvida entre respeitar um cão ou um homem sempre escolherá o cão ("Cuando uno de nosotros desaparece del mapa, el mundo no piede gran cosa; (...) pero cada vez que muere un buen perro, todo se vuelve más desleal y sombrío"). Há crônicas zangadas, quase panfletárias, sempre contra aqueles que demasiado egoístas e/ou canalhas, abandonam nas férias de verão os cães que presentearam aos filhos no dia de Natal (há também crônicas que acusam o poder público de descaso ou omissão nos crimes desta natureza). Mas há também aquelas mais sentimentais, doces, que falam com alegria da cumplicidade que une gente como ele aos cães com os quais convive (Pérez-Reverte consegue não descambar para o melodramático, mas chega um bocado perto). O livro inclui umas poucas ilustrações de Augusto Ferrer-Dalmau. É o tipo de livro que alegra o sujeito que está aborrecido após um dia de trabalho e não quer enfrentar a estupidez reinante que é divulgada pela televisão. Em tempo:  Sou de outra natureza, pouco sei de cães, nunca convivi com eles. Aprendi algo lendo don Arturo, claro. É que fui adestrado (por gatos) apenas na nobre arte de conviver com gatos e contar das maravilhas desse convívio. Vamos em frente. 
[início: 12/04/2015 - 29/04/2015]
"Perros e hijos de perra", Arturo Pérez-Reverte, ilustrações de Augusto Ferrer-Dalmau, Barcelona: Alfaguara / Penguin Random House Groupo Editorial, 1a. edição (2014), capa-dura 14,5x21,5 cm., 157 págs., ISBN: 978-84-204-1786-8

quarta-feira, 13 de maio de 2015

blue

"Blue" é um dos livros de tirinhas de Rafael Koff, talentoso cartunista e publicitário gaúcho. Ele afirma em seu site que "Blue" é um livro sobre depressão, pessimismo e mais um monte de coisas ruins. Claro, é tudo isso e também um livro cheio de ironias, deboche, citações da cultura pop e afirmações politicamente incorretas (neste desgraçado país, onde a tirania dos hipócritas defensores da correção política em todos os níveis da linguagem e da comunicação ocuparam todos os espaços possíveis - coisa que apenas nossa atávica vocação para a estupidez explica - isso é um grande alento). Koff tem produzido seus livros com regularidade. Já publicou um dezena deles (já resenhei aqui "Cueca por cima das calças", "Dúvidas cruéis de um idiota" e "Jesus"). Seguro que haverá mais Rafael Koff por aqui. Cabe lembrar que os livros independentes do Rafael podem ser adquiridos através do site Wix. Vale.
[início - fim: 28/04/2014]
"Blue", Rafael Koff, editora Manuzio, 1a. edição (2014), brochura 21x15 cm., 100 págs., sem ISBN

terça-feira, 12 de maio de 2015

contos vertiginosos

Os contos curtos de Roberto Schmitt-Prym são como fragmentos de memória, recortes de situações e vidas das quais nunca saberemos dos antecedentes ou dos fatos que se desdobrarão delas. O olho do narrador parece surpreender os eventos e registrar o que há de mais curioso ou impressionante neles."Perguntas" lembra um poema de Wislawa Szymborska, aquele que o narrador/terrorista conta os minutos que faltam para a explosão de uma bomba (e faz o censo daqueles que irão morrer); "Regresso" lembra uma peça de Mário Prata ("Besame Mucho"), onde a cronologia reversa explica a motivação de um crime; dois ou três outros contos jogam com as possibilidades lógicas daquela parábola taoista que fala de um monge e uma borboleta que sonham. Schmitt-Prym (de quem já li uma boa tradução de Giacomo Joyce) alcança mostrar sua versatilidade e domínio da técnica, entretanto suas histórias parecem destinadas a se diluirem no vasto mar de tantas outras que os leitores conhecem e não mais identificam com um único autor. É um risco previamente calculado (ou sua ambição original)? Difícil saber. De qualquer forma vou procurar mais coisas dele.
[início: 25/04/2015 - fim: 27/04/2015]
"Contos vertiginosos", Roberto Schmitt-Prym, Porto Alegre: editora Bestiário, 1a. edição (2012), brochura 14x21 cm., 79 págs., ISBN: 978-85-98802-27-1

segunda-feira, 11 de maio de 2015

o seqüestrado de veneza

Sempre que encontro algo sobre Veneza sei que recuperarei algo dos dias de flanêur que vivi por lá (com o Vasari debaixo do braço). Lembro do John Ruskin, do Jan Morris, de "Brideshead Revisited", das histórias de Javier Marías, Arturo Pérez-Reverte, Josep Pla, Proust e Bioy Casares. Nesse livro encontramos dois ensaios de Jean-Paul Sartre. São reflexões de um esteta, de um filósofo interessado em descrever o que vê da arquitetura e das obras de arte visuais de um lugar. O primeiro e o menor dos dois, "Veneza, de minha janela", é de fevereiro de 1953, publicado originalmente numa revista (Verve, n.27-28). Sartre convida o leitor a segui-lo, a ouvir com ele os ruídos da cidade, a voz dos habitantes, os cheiros e as cores dos lugares, ironiza os tristes turistas que fotografam e consultam guias de viagens. O Grande Canal mostra o caminho, serpenteia pela cidade e oferece ao caminhante o casario, os museus, as pontes, as sombras que nos fazem perder o senso e a direção. O segundo texto ("O seqüestrado de Veneza") dá nome ao livro. É de novembro de 1957 e também foi publicado originalmente numa revista (Les Temps Modernes, n.141). Trata-se de um longo ensaio biográfico sobre Jacopo Robusti, o famoso pintor conhecido como Tintoretto. Sartre descreve como Tintoretto, um veneziano de nascimento, nunca alcançou a mesma posição social que tiveram, cada um a seu tempo, seus colegas Ticiano, Veronese, Rafael, Giorgione, Michelangelo (todos nascidos em outras cidades italianas porém recebidos em Veneza com o respeito oficial da Sereníssima República). A leitura de Sartre é algo marxista, ele louva o fato de Tintoretto trabalhar para comerciantes, igrejas paroquiais, funcionários e pequenos burgueses da cidade e não apenas para os Doges e o alto clero de Veneza. O Tintoretto de Sartre é um operário, um arrivista incansável, um artista que desenvolve procedimentos técnicos que permitem a ele não apenas emular o estilo de seus rivais quanto fazê-lo rapidamente e aceitar preços menores. Ele seria um dos responsáveis por deslocar o sagrado um tanto para fora do centro da arte, incorporando o profano e sua ferocidade. O livro inclui um conjunto grande de notas (assinadas por Luiz Marques) que contextualizam as informações de Sartre (há algumas incorreções segundo Marques, mas nada que desautorize totalmente o texto). Há também uma boa cronologia de Tintoretto. Bom, mas vamos em frente.
[início: 19/04/2015 - fim: 28/04/2015]
"O seqüestrado de Veneza", Jean-Paul Sartre, tradução de Eloisa Araújo Ribeiro, São Paulo: editora Cosac Naify, 1a. edição (2005), brochura 15,5x19 cm., 104 págs., ISBN: 978-85-7503-444-8 [edição original: Le sequestré de Venise (Paris: Editions Gallimard) 1964]

domingo, 10 de maio de 2015

de dedos cruzados

Conheci o João Batista há mais de quarenta anos, certamente antes de 1975 (que foi o ano em que comecei a trabalhar e deixei de frequentar os treinamentos de atletismo que ele organizava na Vila Euclides, em São Bernardo do Campo). Fiquei sem notícias dele por anos. Noutro dia, por acaso encontrei esse livro dele (o hábito e o acaso sempre competem para serem o mais fiel dos camareiros que velam por nós). A ficha catalográfica diz que se trata de literatura infanto-juvenil, mas vou classificar "De dedos cruzados" neste meu blog como novela, uma boa e honesta novela. O narrador da história dá conta de alguns sucessos da vida de um sujeito que nasce numa pequena cidade do interior do Brasil e torna-se um respeitado professor de educação física. Esse sujeito, Givaldo, vence a poderosa inércia desses lugares, grotões perdidos deste Brasil, consegue estudar numa boa universidade, volta para sua pequena Curva do Rio e assume não apenas o cargo formal de professor, mas sim o de educador dos alunos de sua antiga escola. Trata-se de um romance moral, que ilustra através da ficção as possibilidades transformadores da educação, dos bons exemplos, dos valores perenes de uma coletividade, do trabalho solidário. A trama é movimentada (o protagonista da história quase morre logo no início do livro, a cidade experimenta uma terrível inundação, Givaldo luta para tornar sua teorias pedagógicas em ferramentas reais de efetiva mudança social). O narrador mantém o leitor curioso pelos desdobramentos dos sucessos que cada um de seus personagens experimentam. Aliás o narrador é um otimista incorrigível (como sempre foi o João Batista que conheci), mas não é nada condescendente, nem ofende a inteligência do leitor explicitando soluções mágicas ou adotando o fácil caminho do proselitismo político (cousas que se praticam com demasiada frequência nesse azarado país). Ao fim, o que o João Batista oferece é um honesto convite para a reflexão prática sobre os complexos problemas da educação brasileira. Não é pouco. Valeu João.
[início: 26/04/2015 - fim: 28/04/2015]
"De dedos cruzados", João Batista Freire, ilustrações de Dane D'Angeli, Porto Alegre: editora Mediação, 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 128 págs., ISBN: 978-85-7706-101-3

sábado, 9 de maio de 2015

cine privê

Noutro dia, na ensolarada Salvador, conversando com o David Viana, um amigo físico que conheço há mais de trinta anos, descobri que seu irmão escreve (como gosto desses acasos). O David também ficou surpreso quando soube que eu escrevia sobre os livros que leio, de forma que ficamos assim bem empatados. Procurei os livros do Antonio Viana e que grata surpresa tive. "Cine privê" é de 2009. É um conjunto de contos de alguém que domina totalmente a técnica e tem a imaginação suficientemente ágil. Ele oferece ao leitor, a cada conto, a cada história, reflexões realmente ricas e poderosas. Os protagonistas das histórias são quase sempre jovens, crianças, garotos, pessoas que não tem a vida dominada por estereótipos, mas sim que experimentam cada desafio e mesmo os tropeços com decisão e coragem. As histórias são quase sempre cruéis, não há nelas um traço ou vislumbre otimista possível, mas o leitor que já aprendeu que não é função da boa literatura oferecer amostras da vida real edulcoradas (ou esgarçadas, tanto faz) recebe e lê as invenções de Viana com prazer. Ele não confunde o processo de transformar os fatos duros da vida em ficção com a invenção, a ficção, de fatos duros e terríveis, ou seja, ele não é um roteirista de documentários mas sim um bom criador de contos. São vinte os contos, todos curtos, muitos deles gravitando o universo do amor e do sexo, explorando aquele momento da vida de cada um de nós onde nos definimos ou, ao menos, experimentamos algo capaz de nos marcar para sempre. Os nomes que Viana inventa para seus personagens são algo que merece ser registrado. O sujeito gosta de usar os nomes mais amalucados, aqueles que só a ingenuidade e a verdade da gente simples poderia usar sem vergonha ou pudor, pois valorizam antes o agradável que é o som dos nomes e das coisas que o real sentido delas. A frieza e a concisão de Viana são notáveis. Claro, vou procurar mais livros desse sujeito. Vale.
[início: 13/04/2015 - 22/04/2015]
"Cine privê", Antonio Carlos Viana, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2009), brochura 14x21 cm., 124 págs., ISBN: 978-85-359-1440-5