sexta-feira, 11 de setembro de 2015

mathilda

Mary Shelley é conhecida principalmente por ter criado Frankenstein, um dos mais icônicos personagens da literatura (e da cultura, desde seu lançamento, no início do século XIX). Além de escrever romances, contos, ensaios e peças de teatro ela também atuou como editora e foi uma aguerrida defensora dos direitos das mulheres (como sua mãe, uma das pioneiras do feminismo, Mary Wollstonecraft). "Mathilda" foi escrito dois anos depois do lançamento de Frankenstein, em 1820, mas somente publicado em 1959, mais de cem anos após sua morte. Seu pai, William Godwin, jornalista e escritor, recebeu os originais de "Mathilda" e nunca os devolveu à filha, talvez escandalizado com a história. Trata-se de uma história moral, que descreve o progressivo esgotamento de uma jovem mulher que é assediada sexualmente por seu pai. A história é contada retrospectivamente. Mathilda, que vive solitária numa região remota da Inglaterra, escreve para um amigo uma carta de despedida, onde lhe explica as razões de sua depressão e esgotamento. O leitor acompanha então seus sucessos. Sua mãe morre no parto; o pai, abalado, a deixa aos cuidados de uma irmã solteirona e parte numa longa viagem; Mathilda vive no campo (nas terras altas escocesas), com pouco contato humano, mas sendo educada de acordo com as regras de sua classe social e fortuna; quando ela faz dezesseis anos seu pai volta (da Pérsia e da Índia, mais poucos detalhes dá das maravilhas e perigos que viveu nestes lugares); logo após a morte repentina da tia paterna o pai a leva para Londres, onde vivem idilicamente uns poucos meses, em jantares e recepções. Esses fatos são contados rapidamente, em pouco mais de um quarto da novela. Mary Shelley então dá uma guinada na história e conta o choque que Mathilda experimenta quando seu pai inexplicavelmente a rechaça, partindo para uma propriedade no campo para logo chamá-la para reunir-se novamente a ele. Lá ele alterna um tratamento frio e distante com furiosas altercações e insultos. Um dia, durante um passeio pelo campo, pressionado pela filha para contar quais são as razões de seu humor instável e preocupações, o pai confessa estar terrivelmente apaixonado por ela, sempre enciumado da presença de outros homens em sua vida. Sofre ali mesmo um colapso. A partir deste ponto (que não corresponde nem metade do livro) Mathilda passa a racionalizar ativamente o comportamento do pai e sua reação, não conseguindo imaginar para si uma redenção possível. Ambos se afastam completamente. Toda a segunda parte do livro trata das conjecturas que Mathilda faz sobre sua vida futura e seus sofrimentos (o tal amigo que receberá sua carta também tem uma história triste para contar; sua breve amizade e atenção para com Mathilda funcionam como catalisadores de alguma melhora em sua saúde, mas em nenhum momento ela explicita a ele o porquê de seu isolamento). O leitor pode ter ou não entendimento de que o incesto tenha sido consumado. Os procedimentos de  autoanálise de Mathilda são muito bem descritos por Mary Shelley. Em nenhum momento o leitor é levado a se apiedar dela por injunções religiosas ou até mesmo mundanas, no sentido mais convencional, como se ela estivesse preocupada apenas com a vida social que perdeu. O que importa na trama é o terror psicológico infligido pelo pai (e também o auto-infligido por Mathilda), que é paralisante, esgotador, perturbador. Trata-se de um livro que foi escrito cem anos antes da criação dos procedimentos interpretativos da psicanálise. Freud nunca soube dele (morreu vinte anos antes de sua publicação), mas certamente teria lhe dedicado (e a Mary Shelley) alguns comentários. Muito interessante. Esse livro faz parte de uma coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing), da qual já li "A briga dos dois Ivans", "A lição do mestre", "O colóquio dos cachorros" "O véu erguido" e "Michael Kohlhass".
[início: 05/09/2105 - fim: 09/09/2015]
"Mathilda", Mary Shelley, tradução de Bruno Gambarotto, São Paulo: Grua livros, 1a. edição (2015), brochura 13x18 cm., 153 págs., ISBN: 978-85-61578-47-3 [edição original: Mathilda (Chapel Hill: University of North Carolina Press) 1959]

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