quinta-feira, 17 de julho de 2014

venice

Esse livro foi publicado originalmente há cinquenta anos e sua última edição revista é de 1993. Por que ler um livro de não ficção tão antigo assim? Acontece que é reconhecidamente um clássico, não um guia de viagens, mas sim uma espécie de biografia da cidade, uma evocação da memória produzida por alguém que viveu lá por muitos anos, uma descrição detalhada daquela que seja talvez a mais bela das cidades italianas. Já escrevi nesse blog (ao resenhar "As pedras de Veneza", de John Ruskin) que no fundo qualquer pessoa que tenha visitado Veneza sabe o quanto é inútil tentar descrevê-la para quem ainda não foi até lá. Assim como Ruskin, a autora desse "Venice", Jan Morris, oferece ao leitor um encantamento, um sortilégio, um sólido guia sobre a cultura e história de uma cidade, de um povo. Localizada na fronteira imaginária entre ocidente e oriente Veneza tem uma história milenar, riquíssima. Por receber peregrinos, mercadores e turistas desde seus primórdios tornou-se uma cidade cosmopolita, tolerante com as diferenças, onde religiões e culturas conviveram em harmonia (relativamente as demais cidades européias e asiáticas). O livro pode ser entendido como uma obra de sociologia, geografia e história. Inclui dezenas de curtas biografias de pessoas que viveram lá. A prosa é bem humorada, equilibrando o que é factual com análises pessoais de alguém que adotou uma cidade para viver e quer bem entendê-la. Encontramos nele miríades de histórias que se entrelaçam, que se repetem em camadas, que são contrastadas. É dividido em três seções: "The people"; "The City"; "The Lagoon". Na primeira seção o leitor acompanha as digressões de Jan Morris sobre o povo veneziano, desde os primeiros imigrantes até as muitas minorias que progressivamente lá se instalaram. No segundo é a geografia da cidade que é explorada. Como um flâneur o leitor passeia pelos canais, vê a arquitetura e os elementos de decoração, visita os palácios, igrejas e museus, resvala pelo calçamento, pelas pedras de Veneza, esperando conseguir, como Proust, um estalo da memória involuntária. A terceira seção fala do mar e da grande lagoa que cerca e protege a cidade. Jan Morris fala da história de cada uma das grandes ilhas, dos rios tributários da lagoa, das batalhas navais que a partir dali os venezianos empreenderam. O livro inclui alguns mapas esquemáticos (mas nada muito detalhado, como seria o caso num guia), uma cronologia sucinta da história da cidade e um necessário índice remissivo (que realmente funciona quando leitor quer voltar algumas páginas e conferir as informações que leu sobre determinado assunto). Talvez seja o caso de eu me ocupar no futuro com a adorável procura por um livro mais recente sobre Veneza. Veremos. Em tempo: Recebi o pacote da AbeBooks com esse livro no último 25 de março. Acontece que 25 de março de 421 (exatamente ao meio dia) é tradicionalmente considerada a data (e hora) de fundação de Veneza. Uma lenda urbana consolidada pelo tempo, claro, mas não é uma maravilha para os sentidos quando uma inusitada coincidência dessas acontece? 
[início: 25/03/2014 - fim: 02/07/2014]
"Venice", Jan Morris, London: Faber and Faber Limited, 3a. edição (1993), brochura 13x20 cm., 320 págs., ISBN: 0-571-16897-3 [edição original: James Morris, Venice (Faber and Faber) 1960; 3rd revised edition, 1993]

3 comentários:

Kelvin Falcão Klein disse...

Aguinaldo, você sabia que a Jan Morris escreveu esse livro quando ainda era homem? Ela fez uma operação de mudança de sexo no Marrocos em 1972. Uma vez vi uma entrevista com ela em que dizia que tinha girado o mundo inteiro tanto como homem como mulher, e chegou à conclusão que era mais seguro viajar como mulher.

Aguinaldo Medici Severino disse...

Oi Kelvin, como vais?
Sim. Lendo a apresentação do livro ela fala isso. Fiquei na dúvida se era o caso de citar e optei por deixar de fora da resenha. Depois fui atrás de detalhes da coisa toda. É incrível. No livro ela cita experiências com os filhos em Veneza (teve 4 quando era homem). Há também um olhar sobre o papel das mulheres no livro que é especial. Encomendei uns outros livros dela. Quando ler (e resenhar) vou mencionar esse fenômeno (incrível como umas coisas parecem modernas mas são bem mais antigas que supomos). Abração. Aguinaldo.

Kelvin Falcão Klein disse...

Que história incrível...

abração!