segunda-feira, 16 de abril de 2012

aire de dylan

Em "Aire de Dylan" Enrique Vila-Matas conta uma história especialmente cara a todos que já vagaram com calma pelas ruas simétricas do Eixample, em Barcelona. Boa parte do que é narrado no livro acontece pelos carrers e nas pequenas lojas, cafés, hotéis, livrarias, bares e restaurantes daquele bairro. O leitor encontra nestas páginas até a Filmoteca de la Generalitat, que fica na Avinguda Sarriá, um lugar maravilhoso. "Aire de Dylan" funciona como uma espécie de volta à Ítaca, ou seja, uma volta racional para casa (para o bairro barcelonês), após os sucessos nos labirintos de Dublin em seu livro anterior, o divertido "Dublinesca", no qual um editor, Samuel Riba, organiza um funeral para a "Era de Gutenberg". O narrador de "Aire de Dylan" não é nominado e em muito pode ser obviamente identificado com o Vila-Matas real, se é que isto ajuda em alguma coisa (afinal, de que adianta seu personagem estar em São Paulo nas mesmas datas que Vila-Matas visitou-a?). Após uma longa carreira literária ele decide não mais escrever livros. Decide isso logo após ser convidado para participar de um congresso literário sobre o fracasso (o início de todos os livros dele que já li sempre são absurdamente inventivos e mesmo as coisas mais amalucadas acabam funcionando). Lá ele conhece um jovem compatriota seu (dono de um improvável nome, Vilnius) que apresenta um relato sobre o fracasso no lugar de seu pai, um escritor barcelonês morto recentemente, que havia sido convidado para o congresso. O inusitado relato biográfico de Vilnius aproxima-o do veterano escritor/narrador. A partir daí Vila-Matas alterna sketches dramáticos, onde Vilnius continua a descrever o tenso relacionamento que mantinha com seu pai, com as reflexões do narrador sobre o comportamento de seu jovem amigo. Há um paralelismo óbvio com o Hamlet de Shakespeare, principalmente na dificuldade de Vilnus em tomar uma decisão quando fica sabendo que a morte de seu pai não foi acidental. Ao mesmo tempo o livro descreve com sarcasmo como editores, escritores e leitores compartilham versões de um projeto editorial. Vila-Matas parece apresentar ao leitor um contraste entre o poder de síntese narrativa de um velho escritor e o uso algo artificial de técnicas metalinguísticas na construção das histórias do jovem. Enquanto um parece cansado e entediado das repetições do mundo literário (mas não obstante continua a escrever, prova é o livro que o leitor tem nas mãos), o outro se recusa a agir, a produzir ele mesmo um relato biográfico válido das aventuras de seu pai (apenas as narra, em seus blocos teatrais, delegando a tarefa de grafar ao velho narrador). Enquanto um personagem é disciplinado (e escreve o livro que lemos) o outro opta voluntariamente por deixar o tempo passar (Vila-Matas afirma que pessoas assim são discípulos de Oblomov, um personagem do escritor russo Ivan Goncharov). A ironia de Vila-Matas é mesmo poderosa. Ele parece alertar o leitor para a facilidade aparente que um texto pode ter (coisa muito corrente nestes dias, onde os manuais de lixeratura e cursos rápidos de escrita criativa dão a entender que qualquer sujeito pode se transformar em um escritor num passe de mágica). Há muito mais referentes neste livro: a obsessão cinematográfica de Vilnius com um filme obscuro cujo roteirista foi Scott Fitzgerald; o flerte de Vila-Matas com a literatura policial descompromissada, como nos romances de Agatha Christie; a vida como sonho - como aquele imaginado por Calderón de la Barca; as delícias do dolce far niente invocados por uma música de um filme de 007 (o satânico Dr. No); um fim de mundo antecipado por Bob Dylan durante o festival de Newport; a versão de james Joyce para o dilema de Hamlet; uma eventual inspiração em um livro de Nabokov (aprendi isso no bom blog El lamento de Portnoy). Quem gosta dos jogos metaliterários de Vila-Matas se diverte um bocado. Por fim, dentre os livros de Vila-Matas que já li, este é dos que mais me agradou. [início 28/03/2012 - fim 10/04/2012] 

"Aire de Dylan", Enrique Vila-Matas, Barcelona: Editorial Seix Barral (Biblioteca Breve), 1a. edição (2012), brochura 13,5x23 cm, 327 págs. ISBN: 978-84-322-0964-2

Um comentário:

Cassionei Petry disse...

Não pude comprar esse livro ainda. Sobre o fracasso, é um tema interessante. Podemos lembrar o "Da mão para a boca - crônica de fracasso inicial", do Auster. Minha dissertação, que seria escrita em forma de diário, teria o fracasso no título também.
VM é VM.