quinta-feira, 1 de março de 2012

o tempo redescoberto

Ler Proust não representa a felicidade, mas não ler Proust é insuportável. Bem disse isso uma vez don Renato Cohen, que partilhou comigo sua leitura dos volumes do ciclo "Em busca do tempo perdido". Nestas últimas semanas reli "O tempo redescoberto", vinte e cinco anos após a primeira vez, como vi anotado no surrado volume que retirei de meus guardados. Reli imerso em sensações boas, desfrutando cada parágrafo, refletindo sobre as idéias, lendo passagens em voz alta para doña Helga, retardando a inevitável chegada a página final, como quem lamenta antecipadamente a perda de um grande bem, de uma jóia rara.  Os aborrecimentos da vida pareceram mais toleráveis, tolos, desprezíveis. Cronologicamente este deve ter sido o primeiro dos livros imaginado por Proust, já que dá conta da gênese dos romances do ciclo. Tão devastadora é a passagem do tempo sobre as personagens e sobre os valores mundanos da sociedade descrita por ele que pouco resta ao leitor, a não ser refletir sobre suas próprias histórias, seus amores, seu comportamento, suas vitórias e derrotas, suas mazelas e diatribes cotidianas. Proust divide este livro em três capítulos, mas os dois primeiros são bem curtos, formam peças que complementam, retrospectivamente, os sucessos daquilo que lemos nos dois volumes anteriores, "A prisioneira" e "A fugitiva" (e também algo dos demais: Sodoma e Gomorra, No caminho de Swann, À sombra das raparigas em flor, O caminho de Guermantes). O narrador descreve inicialmente como ficou impossibilitado de frequentar as recepções e festas durante um longo período de tempo, por conta de problemas de saúde. No primeiro capítulo ele fala de seus dias em Tansonville, nos anos que antecedem a primeira grande guerra, sendo recebido por Gilberte, com quem relembra os anos de infância e primeira juventude. A metamorfose pela qual passa Saint-Loup é algo inesperado (lembro-me que Paulo Francis defendia ser injustificado), mas se encaixa bem no projeto global do ciclo. O narrador reconhece finalmente sua incapacidade de conceber um projeto literário, como almejava desde muito jovem. No segundo capítulo, já nos anos finais da grande guerra, ele descreve um encontro com o Sr. de Charlus, metamorfeado por sua vez em uma espécie de rei Lear, um homem cujo corpo decrépito encerra uma mente ainda ágil e inteligente, que quase inspira compaixão do leitor. Mas é no terceiro capítulo, onde o narrador descreve sua ida a uma grande recepção na casa dos príncipes de Guermantes, após sua segunda longa internação em um sanatório, que domina o volume. Este capítulo é ao mesmo tempo uma síntese do projeto literário que o narrador programa empreender e um desfecho de todas as histórias mundanas que foram desenvolvidas nos volumes anteriores. Ao se deslocar para a festa o narrador experimenta uma série de epifanias (há um pequeno ensaio de Samuel Beckett onde ele fala do acumulo de sensações que estas epifanias provocam no leitor). Estimulado por estas sensações, que o fazem entender as diferenças entre o valor da memória voluntária, inteligente e o da memória involuntária, ele, ao ser finalmente admitido ao salão principal da recepção, já tem a concepção completa de seu longo romance, que enfeixará miríades de histórias, como nos contos árabes das mil e uma noites. As camadas de entendimento possível sobre cada personagem, sobre o papel de cada personagem no mosaico social a que pertence, sobre a forma como cada indivíduo é lembrado pelas gerações que advêm sucessivamente exemplificam para o leitor o efeito da passagem do tempo. A idéia da morte assusta o narrador, pois ele imagina que talvez não tenha tempo de colocar no papel tudo o que já idealizou, mas a idéia da morte não é um obstáculo, mas sim justamente o contrário, um catalisador do processo criativo. Livros como este emparedam de alguma forma o coração de um sujeito, aprendemos que não há nas relações sociais valores intrínsicos e/ou imutáveis, que a vida é mesmo um sopro, que a energia que depreendemos para manter uma posição social, um papel na sociedade, não vale muita coisa. Um leitor preguiçoso talvez pudesse apenas ler este capítulo. Claro, ele perderia infinitas maravilhas, inúmeros prazeres, incontáveis momentos de alegria, mas poderia dizer que entende qual é o projeto do livro, do que é mesmo que se trata na obra de Proust. Talvez eu tenha a sorte de viver uns outros vinte e cinco anos e tenha a sorte de reler os volumes deste ciclo. Gostaria de saber como será a encarnação do velho e cansado Guina aos setenta e cinco anos (um senil consumido pelo Alzheimer, incapaz de compreender as sutilezas das histórias ou um senhor de longas cãs e bonachão, já menos amargo, que desfruta novamente o jardim de delícias criado por Proust). Logo veremos. [início 17/02/2012 - fim 29/02/2012]
"Em busca do tempo perdido: O tempo redescoberto (vol.7)", Marcel Proust, tradução de Lúcia Miguel Pereira, Porto Alegre: editora Globo, 7a. edição (1983), brochura 14x21 cm, 252 págs. sem ISBN [edição original: Le Temps retrouvé (éditions Gallimard), 1927]

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