terça-feira, 18 de outubro de 2011

austerlitz

Foi Fernando Landgraf quem apresentou-me "Austerlitz". Ele, mais corajoso que eu, chegou quase ao final do livro e reencetou a leitura, tamanho era seu encantamento. Depois ele escreveu aos amigos recomendando-o, e eu, curioso como sempre, resolvi conhecer Sebald afinal. Se é para fazer comparações espúrias acho que "Os anéis de Saturno" é mais poderoso, talvez por ser mais racional, mais ancorado na tentativa humana de classificar as cousas da vida, mas isso é, claro, totalmente irrelevante, apenas uma impressão e ok, eu sei que essa tentativa é vã e tola. Em "Austerlitz" o narrador de Sebald, como sempre enigmático, amorfo e ambíguo, encontra, já no final dos anos 1960, um sujeito chamado Austerlitz em uma grande estação de trens de Antuérpia. Ambos partilham de curiosidade intelectual com aspectos arquitetônicos e históricos do lugar. A afinidade é sutil, mas imediata e definitiva. Após essa primeira vez Austerlitz e o narrador voltarão a se encontrar somente após quase três décadas. A partir desse reencontro eles manterão contato frequente, algumas vezes por acaso, noutras por conta da vontade explícita de um dos dois. O longo monólogo de Austerlitz, que é a história que está sendo narrada, segue como um mantra pelo romance. Os encontros tem um formato curioso, como se o narrador fosse um psicólogo ou analista que ouve seu paciente sem julgá-lo, em reiteradas sessões clínicas. Austerlitz ora confessa coisas, ora pratica uma espécie de auto-análise, exercitando sua memória, narrando sua vida e suas obsessões. Na verdade Austerlitz passa por uma metamorfose na narrativa. No início do livro ele é calado, objetivo e professoral. Mas nos encontros posteriores com o narrador passa a praticar uma quase-verborragia, um misto de memorialista de si mesmo, de detetive de sua biografia. A influência de Proust e a idéia de memória involuntária sobre os homens é perene nesse livro. Mas Sebald não parece tão seguro como Proust em afirmar que a memória voluntária não tem valor. Sebald se distingue nas descrições dos hábitos e procedimentos que homens e mulheres praticam na vida cotidiana, nas suas relações mundanas. Ele apresenta lentamente a evolução e transformação de seu personagem, sem sobressaltos. Os colapsos que pontualmente afetam Austerlitz (e que no fundo o fazem recuperar seu passado enterrado) são como as epifanias proustianas (o guardanapo engomado, o martelar nas rodas do trem, o calçamento irregular das pedras de Veneza, o sabor da madeleine embebida no chá de tília, a visão oblíqua das agulhas das torres dos campanários de Martinville). Mas se no caso de Proust o que emerge é um entedimento pleno de como opera a vida, no que há de belo e sublime nela, mas também no que há de grotesco e anacrônico, Sebald faz com que seu personagem saia à tona carregando o fardo das misérias de seu tempo, tornando-o um arauto das atrocidades da segunda grande guerra, dos procedimentos utilizados para o encarceramento e a morte de milhões de indivíduos. Se é que me lembro bem Fernando chamou de "camadas de carma" o que se vê na arquitetura da estação central de trens de Antuérpia. Talvez sejam de fato essas camadas (e não os aspectos técnicos) os reais atratores do olhar de Austerlitz e do narrador. E, da mesma forma, não é conhecimento dos detalhes de como operou a máquina de guerra nazista que melhor explica o destino de cada um dos muitos que foram afetados por ela. Como bem observa Austerlitz ao descrever a moderna biblioteca nacional francesa (uma construção bizarra que praticamente impede o contato entre livros e leitores), existe uma arquitetura na destruição. Entendo o Fernando e seu desejo de continar a leitura por mais tempo, "Austerlitz" é mesmo um livro impactante, mas o velho Guina vai serguir por outros caminhos. [início 04/10/2011 - fim 08/10/2011] 
"Austerlitz", W.G. Sebald, tradução de José Marcos Macedo, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2008), brochura 14x21 cm, 287 págs. ISBN: 978-85-359-1201-2 [edição original:  Austerlitz (Carl Hanser Verlag, München/Deutschland), 2001]

2 comentários:

Anônimo disse...

Olha Proust perdido aqui :)
Interessante!

Dê uma olhada:
http://chegadessaudade.blogspot.com/2011/10/beckett-and-joyce-pitch-and-putt.html

Anônimo disse...

http://www.lpm-blog.com.br/?p=11832

Um discurso de Lênin e uma receita de camarão: não.