sexta-feira, 1 de julho de 2011

a misteriosa morte de miguela de alcázar

Há livros que nos provocam intelectualmente e outros que simplesmente se deixam desfrutar, sem muito esforço. É o caso deste divertido "A misteriosa morte de Miguela de Alcazar", de Lourenço Cazarré, jornalista gaúcho radicado em Brasília. Cazarré é um autor experiente e já premiado, com mais de 30 livros publicados, entre contos, romances e textos dedicados ao público infanto-juvenil. "A misteriosa morte de Miguela de Alcazar" é antes uma sátira que um romance policial canônico. O deboche é explícito. Uma versão anterior dele foi publicada na forma de folhetim em um jornal brasiliense em meados dos anos 1990. Por ter sido pensado originalmente como um folhetim, o livro ainda guarda algo do ritmo e truques deste gênero, seja no tom com que o narrador se comunica com o leitor, pontuando a história com divagações; seja na sucessão de “ganchos” que aparecem ao final de cada capítulo, postergando a elucidação da história. O enredo é simples: um jornalista é escalado por seu editor para cobrir um inusitado encontro de velhos escritores de romances policiais. O encontro é sigiloso e acontece em um hotel de Brasília, administrado por um gerente bem conhecido do editor. Tanto o jornalista quanto o editor e o gerente são terrivelmente mal-educados, preconceituosos, repulsivos. Já os escritores inventados por Cazarré são caricaturas de escritores reais (entre eles Dashiell Hammett, Agatha Christie, Georges Simenon e Jorge Luis Borges). Ele faz com que cada um desses personagens de alguma forma tenha se familiarizado com o português, que falam com acentos regionais bastante marcantes. Um fala com acento mineiro, outro carioca, os demais em registros gauchesco, nordestino e paulistano. Há ainda um deles que se expressa por meio de um rascante portunhol. Esse artifício dá a Cazarré oportunidade de fazer seu narrador arriscar alguma sociologia selvagem, na qual as diferenças regionais brasileiras são contrastadas com a forma de resolução de crimes utilizadas por cada detetive, características de seus países de origem. Como é de se esperar em um romance desse tipo, alguém morre (o título do livro já antecipa isso, claro). Cabe, então, aos detetives, com a ajuda do jornalista, do gerente do hotel e de um delegado (tão pernóstico quanto os dois) descobrirem quem matou Miguela de Alcázar. Trata-se do típico problema de crime em uma sala fechada, mais do que conhecido por quem aprecia literatura policial. Esse é um romance que parece ser o resultado de um projeto de entretenimento honesto, sem grandes pretensões intelectuais, nem literárias. Cazarré brinca com a impossibilidade de se inventar uma história policial que não tenha sido ainda experimentada. É um livro bem editado, tem uma capa divertida, boa distribuição do espaço e inclui bons detalhes gráficos. O livro lembra alguns aspectos de Murder by death (Assassinato por morte), filme de Robert Moore, de 1976. Os personagens de Cazarré abusam do uso de clichês, frases feitas e termos regionais (em sua maioria gauchescos, mas há "sotaques" para todos os gostos). Parece que se aferrando ao efeito jocoso que esses termos provocam no justifica-se a forma de agir de seus personagens, acrescentando alguma graça e relevo a eles. É um livro linear, previsível. Um leitor ingênuo pode se satisfazer com uma história bem contada, mas um leitor reflexivo pode chegar a se irritar com a ausência de algum desafio que seja digno de nota. De qualquer forma Lourenço Cazarré domina bem a maquinaria da escrita literária. Mesmo um sujeito que se irrite com a proposta de seu enredo reconhece que Cazarré sabe conduzir sua história com apuro técnico sofisticado e poderoso. [Em tempo: esta resenha foi produzida originalmente para o Campeonato Gaúcho de Literatura de 2011, do qual fui juiz. Em função do formato desse campeonato esta resenha compartilha idéias com aquela do outro livro que julguei: "Enchentes", de Guido Kopittke]. [início - fim 24/06/2011]
"A misteriosa morte de Miguela de Alcazar", Lourenço Cazarré, Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 1a. edição (2009), brochura 14x21 cm, 176 págs. ISBN: 978-85-286-1379-7

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